segunda-feira, 22 de novembro de 2010

relato de lançamento - Viva Mexico! de Alexandra Lucas Coelho

[Viva Mexico! escrito pela jornalista Alexandra Lucas Coelho (Público), publicado na colecção Literatura de Viagens da editora Tinta da China.
Bar do Teatro da Barraca, 15 de Novembro, pelas 21h30]

Sou dos primeiros a chegar ao Cinearte, o bar da Barraca. É uma boa sala, preenchida por mesas quadrangulares com tampos de mármore em que assentam travessas cheias de tiras de milho e de outros acepipes mexicanos. De um lado a varanda, do outro um palco baixinho, junto do qual está montada uma banca em que se vendem o livro lançado hoje, Viva Mexico, e um outro da mesma autora, Caderno Afegão, publicado em 2009. Ao balcão está ao serviço um reputado livreiro especializado em poesia. Abeiro-me e ele pergunta o que vai ser. Aponto para o copo de outra pessoa e pergunto se é tequilla. Mescal, corrige. Peço um e ele adianta que não é oferecido. Digo que não estava à espera que fosse, ao que ele responde que não é nada pessoal, mas que ultimamente, nos lançamentos, há quem vá à espera que tudo seja grátis: bebidas, livros, sabe-se lá mais o quê. Acho por bem anotar esta impressão.

Abanco-me, beberico o mescal e petisco os acepipes. Ouve-se uma música apropriada à ocasião (não, não eram mariachis). Quase todos se parecem conhecer e ALC vai circulando, cumprimentando este e aquele. Vítor Silva Tavares, insigne editor e um dos apresentadores da obra, está ensimesmado a um canto, e de tempos a tempos alguém o saúda com reverência. Vão chegando mais pessoas: um escritor com um ritmo de produção intenso, um blogger activo no mundo dos livros, vários grandes repórteres, editores e mais uns quantos representantes das diversas patentes do jornalismo, um grupo de jovens com pinta de literatos-em-construção. As cadeiras vão ficando ocupadas, muita gente ficará em pé. Uma senhora aproxima-se e pergunta-me se me importo que se sente ali. Diz que não conhece ninguém, eu respondo-lhe que tão-pouco. Encetamos conversa: pergunta-me por que motivo estou ali, digo que é uma mistura de curiosidade e de compromisso académico. Já ela gosta de ler as reportagens e as crónicas de ALC e lá decidiu vir ao lançamento; comenta que estes ambientes a deixam um pouco desconfortável, que um filho dela, mais ou menos da minha idade, diz que estas coisas estão repletas de “pseudos” – pergunta-me se é uma expressão frequente hoje em dia.

O barman-livreiro chega-se ao palanque e com um berro saúda os presentes e pede-lhes a sua atenção, apresentando Miguel Martins, Vítor Silva Tavares e a autora. Esquece-se do coordenador da colecção, Carlos Vaz Marques, e volta atrás para o anunciar – risos na plateia. São dele as primeiras palavras, a voz é a mesma que se ouve na rádio: refere que ALC é a primeira autora a ter dois títulos na colecção; destaca as virtudes da sua escrita e o modo como o mercado recebeu bem o primeiro livro. Mais do que ele, diz, os dois outros intervenientes da noite saberão apresentar o livro – e passa-lhes a vez.

Primeiro Miguel Martins. Traz a sua comunicação já escrita e lê-la enquanto fuma. Começa com Malcolm Lowry e durante os dez minutos que demora a sua intervenção procura convencer a audiência de que não é de todo a pessoa apropriada para estar ali. Mais além da modéstia, falsa ou não, há um louvor à prosa de ALC e à sua capacidade de reportar aquele mundo com que se deparou e por onde ele, Miguel Martins, também andou. O final é insólito: oferece uns tacos à autora, afirmando que, podendo não ser grande coisa, serão certamente a melhor coisa que fez hoje. A plateia aplaude risonhamente.

Entra Vítor Silva Tavares em cena: começa por parodiar a situação, dizendo que está num sarilho porque é o primeiro lançamento em que se vê envolvido na sua vida – risos entre a audiência. Mas não podia recusar o pedido da autora. Cita um prefácio de Almada Negreiros à obra Homem de Barbas, de Manuel Lima, para falar da admiração, do que é admirar, passando depois a falar das razões que o levam a admirar a escrita de ALC – isto apesar de já não gostar assim tanto dos jornalistas de hoje em dia, acrescenta. Outro motivo para aceder ao convite, diz VST, foi o lugar, visto que o Cinearte lhe é querido por ter sido o seu primeiro cinema. É do Cinearte, aliás, que vem a sua primeira imagem do México: no filme Fantasia, de Walt Disney, entra um mexicano, de seu nome Panchito. Anos mais tarde, veria Viva Zapata! de Elia Kazan, com Marlon Brando. VST contrapõe estas suas referências de México com as que a autora cita no início do livro, anteriores à sua chegada ao país: Octavio Paz, Frida Kahlo, Lowry, Artraud, Trotsky… A conclusão a que se chega, afirma, é que ele não é um intelectual como ALC, gerando uma gargalhada na plateia. E daí para a frente serão muitas: VST tem uma série de passagens assinaladas e lê-as uma após outra. Brinca com a repórter, capta-lhe o estilo, procura desconstruí-lo. Elogia muitos dos trechos, critica uma ou outra. A páginas tantas, ALC descreve uma casa por onde passou como “parecendo uma utopia”. VST detecta uma “incongruência”, a utopia é lugar nenhum, diz, e conta uma pequena parábola a esse respeito: um homem dá um passo na direcção do horizonte e ele afasta-se outro tanto. Por que está lá o horizonte, então? Para nos fazer andar. A sala inteira está presa às palavras de VST, que segue por ali fora, de página em página, citando as palavras de ALC sobre as matanças junto à fronteira com os EUA, sobre os murais, sobre a Cidade do México, vinte milhões de seres humanos. Quando termina é brindado com uma estrondosa salva de palmas, que agradece uma vez, duas vezes, e à terceira berra “já chega!”

A autora parece estar comovida; agradece a Miguel Martins (está sempre a fumar) as palavras e os tacos, a VST por ser “um dos meus heróis de sempre”, a colegas do Público que a ajudaram na concretização do projecto, à designer, Vera Tavares, que fez “estas maravilhosas caveiras” da capa. E assim ficam as coisas, não cai o pano porque não o há. Voltam a música mexicana e o convívio. Carlos Vaz Marques tem de perseguir a autora para ela ir tratar dos autógrafos da praxe. Vítor Silva Tavares, já fora do palanque, volta ao seu canto.

João Cancela

2 comentários:

  1. 'Não cai pano porque não o há", mas o ponto finaliza um pequeno "conto-relatório"! Boa percepção, boa escrita!Parabéns!

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  2. Talvez o México seja uma mudança de percepção. Apenas isso. Uma memória após uma chuva intensa. Como diz a autora, "o México dá vontade de chorar, um choro de séculos em que não percebemos porque choramos, se somos nós que choramos, se não seremos nós já eles. Nunca, em lugar algum, me pareceu que tudo coexiste, tempos e espaços, cimento e natureza, homens e animais, até aceitarmos que o nosso próprio
    corpo faz parte daquela amálgama acre, ligeiramente ácida, de pele suada com muito chile." Uma mudança que nós, já demasiado ocidentalizados, esquecemos. Obrigado, Alexandra!

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